Mais acordo, menos processo

ANPP é novo paradigma para resolver conflitos sem judicializar

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21 de fevereiro de 2025, 8h30

* Reportagem publicada na nova edição do Anuário do Ministério Público. A versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui). e a versão digital pelo site do Anuário da Justiça (anuario.conjur.com.br).

Capa MP 24

Capa da nova edição do Anuário do Ministério Público Brasil, da ConJur

Usar uma bazuca para atirar em uma formiga. É essa a comparação possível quando a máquina judicial é acionada para punir autores de ilícitos sem maiores repercussões para a sociedade. O acordo de não persecução penal, introduzido no artigo 28-A do Código de Processo Penal pelo chamado pacote anticrime (Lei 13.964/2019), tem o potencial de reduzir as filas de processos criminais no Judiciário ao mesmo tempo que satisfaz vítima, réu e Ministério Público, responsável pela acusação.

Para uma vítima, claro, o furto de um bem será sempre importante. Mas é sensato que os recursos para tornar efetiva a Justiça sejam alocados para os casos de maior complexidade e maior repercussão social e econômica. O acordo de não persecução visa a solucionar os pequenos casos preservando o sistema judicial para que cuide das grandes causas.

A economia processual é inegável: o réu se afasta de sua posição de resistência e aceita cumprir o acordo estipulado pelo MP, que por sua vez deixa de oferecer a denúncia. O caso é homologado pelo juiz e é encerrado.

O advogado criminalista, Diogo Malan, explica que os mecanismos de aplicação negociada causaram uma alteração do centro gravitacional de poder do processo penal. “No modelo tradicional de persecução penal, o sujeito processual mais poderoso é o juiz. Já no modelo negocial, o acusador exerce poderes praticamente ilimitados, sem ability ou controle efetivo: escolhe quais casos investiga diretamente, controla quais informações compartilha com o indiciado, propõe soluções consensuais, escolhe suas cláusulas e condições etc. Por isso, parcela crítica da doutrina pátria questiona se esses mecanismos, originários do sistema anglo-americano, são compatíveis com as características estruturais do sistema processual penal brasileiro, de tradição romano-germânica”, diz. Ressalvada a onipotência do acusador, é do réu a opção de aderir ou não à proposta de acordo, conforme sua própria conveniência.

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O aumento no número de acordos de não persecução penal no país

O próprio legislador constituinte abriu essa comporta, continua Malan, ao prever a transação penal no artigo 98 da Constituição Federal. “O principal desafio, hoje, é a ressignificação das garantias constitucionais do processo – historicamente concebidas para o tradicional modelo processual contencioso – para torná-las plenamente operacionais também nos microssistemas processuais de Justiça negociada”, afirma o advogado.

O ANPP é muito mais abrangente do que a transação penal e a suspensão condicional do processo (veja, ao lado, tabela explicativa de cada instituto), pois contempla crimes cuja pena mínima seja inferior a quatro anos de prisão e que tenham sido praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa: estão aí os crimes patrimoniais, e ambientais , crimes contra a ordem tributária, a istração pública, a dignidade sexual, etc. Mas não alcança o roubo – um dos principais motivos de encarceramento no país –, a violência doméstica ou o racismo.

Fato é que há muito potencial para que os acordos sejam usados como medida redutora do encarceramento. O furto ainda é um dos tipos penais com maior prevalência entre as pessoas encarceradas e o ANPP apresenta uma possibilidade de abarcar praticamente todas as suas modalidades.

Na esteira dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, a Procuradoria-Geral da República ofereceu 1,2 mil propostas de não persecução penal. O procurador-geral da República, Paulo Gonet, afirmou que ele e a equipe ficaram surpresos ao constatar que metade dos réus rejeitaram a proposta e preferiram responder aos processos criminais.

A reflexão prática dos entrevistados ouvidos por este Anuário do Ministério Público é a de que, se ao final da instrução existirá, muitas vezes, uma pena restritiva de direitos para o réu, nada mais prático do que, de forma muito mais célere, estas mesmas penas sejam discutidas e fixadas num acordo.

O promotor de Justiça Alexandre Rocha Almeida de Moraes, do MP-SP, conta que, no início, houve resistência dos colegas, principalmente porque a condenação tira a primariedade do réu. Mas agora os acordos aumentaram e têm saído mais nos crimes de receptação, furto, posse de arma de fogo, embriaguez ao volante, estelionato e, até mesmo, por assédio sexual em transporte público. No fórum criminal da Barra Funda, o maior da América Latina, onde tramitam cerca de 132 mil processos em 32 varas criminais e onde atuam cerca de 130 promotores, foi criado um setor de apoio aos promotores nos casos extrajudiciais, para que vítima e investigado sejam intimados e as audiências de acordo sejam marcadas.

Os acordos nas varas também tendem a aumentar depois que o Supremo Tribunal Federal entendeu e pacificou que os ANPPs se aplicam a casos anteriores à lei, desde que não tenham transitado em julgado. Em outubro de 2024, a 3ª seção do Superior Tribunal de Justiça adequou seu entendimento ao do STF. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, serão afetados 1,7 milhão de casos em tramitação impactados pela decisão do Supremo.

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Os modelos de consenso que o Ministério Público pode adotar (clique aqui para ampliar a imagem)

Além de se preocupar com a uniformidade dos acordos – vítimas distintas não podem receber diferentes tratamentos por situações similares – Rocha fica apreensivo com o seguimento do processo: “Depois que faço o acordo, tenho que mandar para a vara da execução criminal, que está atolada de serviço. Então, o que era para ser célere, acaba demorando demais”.

A advogada Giovanna Perez fez um estudo de jurimetria para seu mestrado na PUC-SP em que analisou 220 ANPPs extrajudiciais firmados em 2022 no mesmo Fórum da Barra Funda. Ela constatou que 47% dos acordos foram cumpridos, 19% estavam sendo cumpridos e 33% não foram cumpridos. Os crimes com maior incidência foram furto, receptação, embriaguez ao volante, estelionato e documento falso. Constatou, ainda, que há dificuldade para fazer a vítima comparecer à audiência e que, em muitos casos, os acordos oferecidos são padronizados, “verdadeiros contratos de adesão”, diz.

O subprocurador-geral de Justiça Criminal do MP-SP, Ivan Francisco Pereira Agostinho, afirma que o MP está preocupado com a uniformidade dos acordos. “É importante saber que não é algo discricionário. Há pressupostos a serem observados. Temos uma experiência muito ruim com a Lei 9.999. Com a transação penal, tudo virou cesta básica. Nossa preocupação é que o ANPP não seja uma super cesta básica. Ou seja, que as condições para não persecução penal sejam adequadas ao tipo do crime”, diz.

Embora o Judiciário não possa julgar o mérito do acordo, cabe a ele fazer o controle de legalidade. O juiz pode não homologar o combinado e o acusado pode recorrer ao PGJ caso discorde de seus termos ou quando o acordo não é proposto.

No MP-SP, por exemplo, essa análise é feita no “setor do artigo 28 do P”, na estrutura da Procuradoria-Geral de Justiça. Há súmulas internas que o procurador-geral edita como forma de controle interno e uniformização. Uma delas diz, por exemplo, que o acordo de não persecução penal em crimes tributários deve incluir a reparação do dano, que é o crédito tributário corrigido.

Alguns órgãos do Ministério Público editaram atos normativos internos para assegurar a uniformização da atuação institucional quanto ao ANPP. É o caso da Resolução 2.429, de 16 de agosto de 2021, do Ministério Público do Rio de Janeiro. O TJ-RJ ou a permitir a celebração de ANPP logo após a audiência de custódia. O TJ do Pará também. Há controvérsia quanto a isto: as condições de livre manifestação de vontade de pessoas que são apresentadas nessas audiências não são as mais favoráveis. Assim, o ideal seria ter audiências específicas para essa finalidade.

O advogado e professor de Processo Penal da Universidade de São Paulo, Vinicius Vasconcellos, tem obras publicadas sobre o tema. Ele defende ser necessário que existam padrões e critérios para buscar maior paridade de tratamento aos ANPPs. “Para isso, devem ser fortalecidos os controles internos no MP e o próprio controle judicial, que na prática tem sido um pouco fraco, pois a maioria entende que é um controle somente formal e que não pode verificar os motivos da recusa pelo MP, o que penso ser incorreto”, diz. Ele comenta que ainda há algumas questões sobre o ANPP que precisam ser mais bem definidas pela jurisprudência. “Há poucos julgados sobre o uso da confissão, que é requisito do ANPP, em caso de rescisão, em outros processos, o que é um tema fundamental que precisa ser definido”, comenta.

Foi por meio dos acordos que o Ministério Público de Pernambuco conseguiu acabar com os lixões irregulares no estado. Segundo o jornal O Estado de S.Paulo, desde 2012, o MP-PE assinou 129 Termos de Compromisso Ambiental com prefeituras que se comprometeram a implementar as medidas da Política Nacional de Resíduos Sólidos. No mesmo período, o MP-PE ou a adotar o ANPP como forma de negociação com as prefeituras. O descarte inadequado de lixo configura o crime de poluição. Ainda segundo o Estadão, ao todo, foram firmados ANPPs com 103 municípios.

Em Roraima, a especificidade central de lá é por conta da questão do fluxo migratório de venezuelanos, guianenses, e também da população indígena, que se envolvem com situações criminosas. “Preocupados com essas especificidades, a nossa central criou uma estrutura de intérprete de língua espanhola, inglesa e indígena. Fizemos credenciamento de intérpretes, concentramos as audiências com pessoas que não falam português em dia específico para que compreendam o que está se ando”, conta o promotor de Justiça do MP-RR, Silvio Abbade. Foram 860 ANPPs celebrados e R$ 2,1 milhões em reparação de danos às vítimas e prestações pecuniárias às entidades sociais.

ANUÁRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO BRASIL 2024
3ª Edição
ISSN: 2675-7346
Número de páginas: 204
Versão impressa: R$ 50, à venda na Livraria ConJur. Clique aqui para comprar a sua edição
Versão digital: gratuita. e pelo site anuario.conjur.com.br ou pelo app Anuário de Justiça

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