Opinião

O direito público e a Lindb: consequencialismo e o 'apagão das canetas'

Autor

  • é procurador do estado do Acre pós-graduado em Direito istrativo Tributário Empresarial e em Processo Civil presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB-AC e advogado sócio de Drumond Leitão Torres Advogados.

    Ver todos os posts

6 de maio de 2025, 16h21

A Lindb (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), reformulada pela Lei 13.655/2018 e regulamentada pelo Decreto nº 9.830/2019, consolidou-se como marco hermenêutico essencial ao direito público brasileiro, mesmo não sendo tecnicamente nova. Sua relevância persiste diante da necessidade contínua de equilibrar eficiência estatal e proteção de direitos fundamentais, em um contexto de transformações estruturais que demandam respostas a críticas históricas: discricionariedade excessiva, insegurança jurídica e opacidade decisória.

Além de atualizar princípios clássicos, como segurança jurídica e motivação istrativa, a Lindb introduziu paradigmas modernos — como consequencialismo, análise econômica do direito e proporcionalidade —, redefinindo as relações entre o Estado e o cidadão com foco em racionalidade e previsibilidade.

O consequencialismo jurídico na Lindb

O artigo 20 da Lindb instituiu expressamente o consequencialismo jurídico ao determinar que, “nas esferas istrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. Este imperativo normativo vincula todas as instâncias decisórias estatais a um método interpretativo que transcende o formalismo lógico-dedutivo tradicional, exigindo a ponderação concreta dos efeitos reais das decisões no ordenamento e na sociedade.

Phillip França [1] leciona que o afastamento dessa “lógica consequencialista” aumenta a probabilidade de decisões desconectadas da realidade concreta, resultando em práticas jurídicas meramente formais e incapazes de atender às demandas sociais. Desde a sua reforma, a Lindb exige que os efeitos temporais, territoriais e humanos das decisões sejam cuidadosamente considerados, assegurando que a atuação estatal promova o desenvolvimento coletivo e a proteção dos interesses públicos.

Na mesma linha, Marçal Justen Filho [2] ensina que as inovações introduzidas pela Lei nº 13.655/18 destinam-se a “reduzir a indeterminação das decisões estatais, que muitas vezes restringem-se a invocar princípios abstratos”. A finalidade buscada é reduzir o subjetivismo e a superficialidade de decisões, impondo obrigatoriedade do efetivo exame das circunstâncias do caso concreto, tal como a avaliação das diversas alternativas sobre um prisma de proporcionalidade.

Exigência de motivação qualificada

O Decreto nº 9.830/2019, ao regulamentar os artigos 20 a 30 da Lindb, detalhou os requisitos da fundamentação consequencialista em seu artigo 2º, estabelecendo a necessidade de contextualização fática, indicação dos fundamentos de mérito e jurídicos, além da congruência argumentativa entre normas e fatos. O regulamento consolida a obrigatoriedade de uma motivação qualificada, que supere a mera invocação retórica de princípios abstratos ou dispositivos legais, demandando a demonstração concreta da proporcionalidade e adequação das medidas adotadas.

Nesse cenário, a exigência de motivação qualificada dos atos istrativos conforme artigo 2º e parágrafos do decreto regulamentador emerge como corolário lógico da segurança jurídica. A istração pública não pode mais valer-se de justificativas genéricas ou da mera citação de dispositivos legais para embasar suas decisões. É obrigatória a descrição clara e circunstanciada dos fatos, dos critérios técnicos adotados, dos interesses públicos envolvidos e das alternativas consideradas.

Spacca

Essa transparência não apenas fortalece o controle interno e externo — inclusive pelo Judiciário e pelos órgãos de fiscalização, como os Tribunais de Contas —, mas também democratiza o o à informação, permitindo que os cidadãos compreendam as razões subjacentes às políticas públicas que os afetam.

Para os advogados, essa mudança representou uma oportunidade estratégica: decisões istrativas lacônicas ou inconsistentes tornam-se alvos mais vulneráveis a recursos istrativos e ações judiciais, especialmente quando confrontadas com a exigência de fundamentação detalhada imposta pela Lindb.

Microssistema de segurança jurídica na Lindb

Os artigos 21 a 24 da Lindb complementam esse microssistema hermenêutico ao prescreverem diretrizes específicas. O artigo 21 impõe a indicação expressa das consequências jurídicas e istrativas das decisões invalidatórias; o artigo 22 exige a consideração dos obstáculos reais enfrentados pelo gestor público; o artigo 23 estabelece a necessidade de regime de transição para novas interpretações que imponham novos deveres ou condicionamentos; e o artigo 24 protege atos praticados conforme orientações gerais vigentes à época de sua produção.

Trata-se de um conjunto normativo que visa a equilibrar segurança jurídica, eficiência istrativa e proteção de direitos, em uma perspectiva pragmática e contextualizada.

De acordo com a análise do Decreto nº 9.830/2019, é importante destacar que o instrumento normativo estabelece requisitos específicos tanto para as decisões baseadas em valores jurídicos abstratos como para os casos de invalidação de atos istrativos.

O artigo 3º determina que as decisões fundamentadas exclusivamente em valores jurídicos abstratos devem considerar suas consequências práticas, demonstrando a necessidade e adequação da medida imposta, com análise das possíveis alternativas e observância dos critérios de proporcionalidade e razoabilidade.

Por sua vez, o artigo 4º estabelece que a invalidação de atos, contratos, ajustes, processos ou normas istrativos deve indicar expressamente suas consequências jurídicas e istrativas, podendo o decisor modular os efeitos da declaração para mitigar ônus excessivos, enquanto o artigo 6º prevê a necessidade de regime de transição quando novas interpretações estabelecerem novos deveres ou condicionamentos. Esse microssistema normativo visa garantir que as decisões istrativas sejam tomadas com responsabilidade consequencialista, equilibrando segurança jurídica com a continuidade dos serviços públicos.

Responsabilização do agente público e o ‘apagão das canetas’

A responsabilização do agente público ganhou contornos mais precisos e equilibrados. O artigo 28 da Lindb estabelece que o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro, tema regulamentado pelo Decreto nº 9.830/2019 em seus artigos 12 e seguintes.

Esse equilíbrio busca evitar dois extremos: de um lado, a judicialização da istração, em que agentes públicos, temerosos de responsabilização, abstêm-se de tomar decisões inovadoras por medo de litígios; de outro, a impunidade de atos manifestamente arbitrários ou lesivos. Na prática, a Lindb exige que os gestores públicos documentem minuciosamente suas decisões, incluindo pareceres técnicos, consultas a órgãos de controle, análises de risco e registros das alternativas consideradas.

É nesse contexto que surge a discussão sobre o fenômeno do “apagão das canetas” — expressão cunhada para descrever a paralisia decisória de agentes públicos que, por medo de responsabilização pessoal, evitam tomar decisões complexas ou inovadoras. É a paralisação pelo temor da responsabilização [3], que resulta em omissão sistemática e compromete a eficiência da istração pública.

O artigo 21 da Lindb, ao exigir a explicitação das consequências jurídicas da invalidação de atos, contratos e normas istrativas, opera como mecanismo preventivo contra a omissão de decidir, pois obriga o controlador a ponderar e demonstrar que os benefícios da invalidação superam os custos de instabilidade e descontinuidade istrativa, equilibrando assim a paralisia por temor com a responsabilidade objetiva de quem decide.

Conceito de erro grosseiro

As mudanças provocadas pela Lei 13.655/2018 buscaram estabelecer parâmetros de decisão para fortalecer a segurança jurídica. Porém, a utilização de conceitos indeterminados acabou gerando insegurança.

A definição de erro grosseiro pelo Decreto nº 9.830/2019 — como aquele erro “manifesto, evidente e inescusável”, praticado com “elevado grau” de culpa — manteve a abstração em seu conceito, dificultando sua aplicação prática e alimentando debates doutrinários e jurisprudenciais. Embora inicialmente a culpa grave e o erro grosseiro fossem tratados como conceitos próximos, o decreto criou distinções que, por sua natureza infralegal, não podem afastar normas superiores, como a Constituição ou a Lei de Improbidade istrativa, sob pena de comprometer a estabilidade das relações jurídico-istrativas e a efetividade da atuação estatal [4].

O desafio persiste: como garantir que a proteção legal não se torne um escudo para a omissão ou a negligência? A resposta está na exigência de documentação robusta e na análise consequencialista das decisões, elementos que a própria Lindb reforça como deveres funcionais.

Mecanismos de implementação no Decreto nº 9.830/2019

O Decreto nº 9.830/2019 detalhou a aplicação dos artigos 20 a 30 da Lindb, reforçando a necessidade de decisões baseadas na análise de consequências práticas e devidamente motivadas. Para tanto, previu instrumentos como a celebração de compromissos istrativos para eliminar incertezas jurídicas no artigo 10, e a possibilidade de firmar termos de ajustamento de gestão com órgãos de controle interno para corrigir falhas sem necessidade de sanções imediatas em seu artigo 11.

Tais mecanismos visam garantir soluções proporcionais e eficientes, voltadas ao interesse público, permitindo regularização sem paralisar a atividade istrativa. O decreto também estimulou a utilização de orientações normativas, súmulas e enunciados para reforçar a segurança jurídica e uniformizar a interpretação do direito.

Quanto à responsabilização do agente público, o decreto consagrou no artigo 12 a exigência de dolo ou erro grosseiro para imputação de responsabilidade, alinhando-se ao espírito da Lindb de proteger a atuação diligente e fundamentada definiu erro grosseiro como aquele “manifesto, evidente e inescusável”, praticado com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

Além disso, o decreto estabeleceu importantes salvaguardas para o agente público: exige a comprovação de dolo ou erro grosseiro para sua responsabilização; afasta a culpa automática pelo simples nexo de causalidade ou pelo valor do dano; considera a complexidade da matéria e as circunstâncias práticas enfrentadas pelo agente; restringe a responsabilização por opiniões técnicas apenas aos casos de conluio ou evidente má-fé; e limita a aplicação da culpa in vigilando exclusivamente às situações de omissão dolosa ou gravemente culposa na supervisão de subordinados.

Desafios na implementação da Lindb

Apesar das inovações implantadas desde 2018, a implementação da Lindb enfrenta desafios práticos. A exigência de motivação qualificada e de análise consequencialista demanda capacitação técnica de agentes públicos, muitos dos quais ainda operam sob uma cultura jurídica formalista, focada na subsunção pura dos fatos à norma.

A inclusão de mecanismos para mitigar o apagão decisório [5] revela uma preocupação legislativa com a eficácia da istração, sem renunciar à responsabilização por abusos. Contudo, a efetividade dessas mudanças dependerá de uma transformação cultural nas instituições, que devem internalizar a segurança jurídica não como obstáculo à ação estatal, mas como garantia de legitimidade e previsibilidade.

Relembro aqui o “código do fracasso” de Roberto Dromi [6], crítica aguda à ineficácia burocrática que paralisa a istração pública. Essa formulação irônica evidencia como estruturas istrativas podem se transformar em obstáculos ao invés de facilitadoras do serviço público, com o seguinte conteúdo: “Art. 1º: não pode. Art. 2º : em caso de dúvida, abstenha-se. Art. 3º: se é urgente, espere. Art. 4º: sempre é mais prudente não fazer nada”.

Sob todos os aspectos, a reforma da Lindb pretendeu afastar a cultura institucional retratada no “código” do parágrafo acima, substituindo-a por práticas istrativas mais eficazes.

Conclusão

A Lindb representa um marco na modernização do direito público brasileiro, alinhando-o a demandas contemporâneas por eficiência, transparência e ability. Seus dispositivos exigem dos operadores jurídicos uma postura técnica, documental e consequencialista, distanciando-se de vícios históricos como o formalismo vazio e a discricionariedade opaca.

As inovações trazidas pela Lei 13.655/2018 e pelo Decreto nº 9.830/2019 estabelecem um novo paradigma interpretativo, em que a segurança jurídica e o consequencialismo se tornam diretrizes impositivas na atuação estatal. Embora persistam desafios na definição precisa de conceitos como “erro grosseiro” e na superação da cultura formalista, o microssistema normativo criado pela reforma da Lindb oferece instrumentos valiosos para equilibrar a eficiência istrativa com a proteção dos direitos fundamentais.

Para a plena efetividade dessas mudanças, é fundamental que os operadores do direito público internalizem o consequencialismo não como mera exigência procedimental, mas como método interpretativo que valoriza a realidade concreta e os efeitos práticos das decisões sobre o interesse público e a coletividade.

 


[1] FRANÇA, Phillip. Ato istrativo, Consequencialismo e Compliance – Ed. 2019. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais. 2019.

[2] Justen Filho, Marçal. Art. 20 da LINDB — Dever de transparência, concretude e proporcionalidade nas decisões públicas. Revista de Direito istrativo, Rio de Janeiro, nov. 2018, p. 15. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/77648/74311. o em 26/04/2025.

[3] MOTTA, Fabrício; NOHARA, Irene Patrícia. LINDB no direito público. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 24.

[4] CLÈVE, Clèmerson. 9. istração Pública, Constituição, Regime Jurídico istrativo e Tutela do Cidadão: A Regulação da Função Pública e a Preservação de Direitos Fundamentais na Contemporaneidade In: CLÈVE, Clèmerson. Direito Constitucional Brasileiro: Organização do Estado e dos Poderes. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais. 2022.

[5] DANTAS, Bruno. O risco de “infantilizar” a gestão pública. O Globo, Rio de Janeiro, 6 jan. 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/o-risco-de-infantilizar-gestao-publica-22258401. o em: 30 abr. 2025.

[6] DROMI, Roberto. Derecho istrativo. 4. ed. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1995. p. 35.

Autores

  • é procurador do estado do Acre, procurador-chefe da Procuradoria Judicial, bacharel em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito istrativo, Tributário, Empresarial e em Processo Civil, ex-presidente da Comissão de Direito Processual Civil e da Comissão de Direito Empresarial, ambas da OAB-AC, advogado sócio de Drumond Torres Resende Advogados.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!