Da necessidade de intimação ou notificação da vítima para que se dê início ao prazo decadencial
10 de maio de 2025, 6h38
A Lei nº 13.964/19, conforme já exaustivamente sabido, instituiu a representação da vítima, nos termos do novel artigo 171, §5º, do Código Penal, como condição de procedibilidade para a propositura da ação penal.

Se não houver a representação da vítima dentro do prazo de seis meses, contados desde o momento em que se conhece a autoria do crime, nos termos do artigo 38 do Código de Processo Penal, a punibilidade do investigado será extinta por força da decadência, com amparo no artigo 107, IV, do Código Penal.
Conclui-se, portanto, que as condições de procedibilidade atuam como filtro do exercício do poder punitivo para fazer valer os princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade do direito penal.
Em outras palavras, a condição de procedibilidade tutela a forma como o direito de ação deverá se materializar, justamente para demandar requisitos específicos ao seu regular exercício. A repercussão processual da falta da condição de procedibilidade é a rejeição da denúncia, nos termos do artigo 395, II, parte final, do Código de Processo Penal.
Extinção da punibilidade
Todavia, no que diz respeito à representação da vítima, existe também importante repercussão penal: a já mencionada extinção da punibilidade, se ela não se manifestar, dentro do prazo de seis meses, para que incida a decadência.
A decisão de rejeição da denúncia, que é terminativa, por falta de representação não obstaculiza nova denúncia com correção do vício, se, e somente se, a representação sobrevier dentro do sobredito prazo decadencial.
O artigo 171, §5º, do Código Penal, por conseguinte, é norma mista, motivo pelo qual se lhe aplica o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica. A controvérsia reside na delimitação dos limites da retroação.
Com a chegada do novo artigo 171, §5º, do Código Penal, o Superior Tribunal de Justiça se dividiu quando lhe foi demandado decidir sobre os citados limites: a 5ª Turma [1] deliberou que, uma vez oferecida a denúncia, não mais haveria espaço para se questionar a falta da representação, com fundamento na existência de ato jurídico perfeito e acabado. Por outro lado, a 6ª Turma [2] entendeu que o oferecimento da denúncia não seria óbice à retroação, cujo limite fatal seria apenas o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A 3ª Seção [3], finalmente, acolheu a posição da 5ª Turma, com o que limitou os efeitos da retroatividade.

Contudo, o Supremo Tribunal Federal deu contornos finais à discussão quando o Plenário sedimentou o entendimento de que a retroatividade alcança os processos em curso, respeitado o trânsito em julgado [4]. Não obstante, se não houver representação, expressa ou tácita, as vítimas deverão ser intimadas para que, no prazo de 30 dias, manifestem-se, aplicando-se, por analogia, o artigo 91 da Lei nº 9.099/95.
Direito e vontade das vítimas
Em outras palavras, se o Ministério Público ofereceu a denúncia sem representação da vítima, antes da Lei nº 13.964/19, expressa ou tácita, uma vez que, nesse último caso, ela não demanda maiores formalidades (o simples registro da ocorrência policial já satisfaz essa exigência) [5], o Supremo Tribunal Federal, ao aplicar, por analogia, o artigo 91 da Lei nº 9.099/95, privilegiou o direito (e a vontade) das vítimas para que insistissem na persecução penal.
E é aí que reside o mote deste artigo.
A simples extinção do processo, sem resolução do mérito, em razão do simples decurso do prazo de seis meses desde a data de vigência da Lei nº 13.964/19 não se mostrou uma solução viável para o Supremo, embora fosse possível.
Poder-se-ia aplicar, ao invés do artigo 91 da Lei nº 9.099/95, o artigo 38 do Código de Processo Penal, para se fixar o prazo de seis meses, contado da vigência da nova Lei [6]. Mas não o fez o Supremo.
E com acerto, porque a interpretação acima transformaria a novel condição de procedibilidade prevista no artigo 171, §5º, do Código Penal em verdadeira causa automática de extinção da punibilidade [7] pela mera agem do tempo, com prejuízo imenso ao direito da vítima de ver os responsáveis pelos crimes identificados, processados, julgados e punidos, que é o alvo predileto da Corte Interamericana de Direitos Humanos nas condenações contra o Brasil [8].
Violação ao princípio da legalidade penal
Seria vedada a aplicação do artigo 91 da Lei nº 9.099/95, por analogia, por ser in malam partem, como defendem alguns? [9] A resposta é não. A analogia, como método comparativo de grupos de casos, implica a aplicação da lei penal a fatos não previstos, mas semelhantes a fatos previstos [10]. Significa, assim, violação ao princípio da estrita legalidade penal.
Todavia, não se pode supervalorizar a sua aplicação, que deverá se restringir à tentativa de subsunção do fato não previsto expressamente à norma penal incriminadora e as suas repercussões sancionatórias. Em outras palavras, é proibido aplicar pena para comportamento não previsto como criminoso, mesmo que seja muito semelhante a outro [11].
Da mesma forma, é proibido estabelecer hipóteses de agravamento da pena para casos próximos, mas não literais daqueles já previstos pela lei penal. No entanto, a incidência do artigo 91 da Lei nº 9.099/95 apenas se justifica como regra de transição para solução do conflito de leis no tempo, que se originou da alteração da natureza da ação penal do crime de estelionato: norma mista, reitera-se.
Por conseguinte, ela não trata, diretamente, de normas penais incriminadoras ou das suas repercussões sancionatórias. Logo, apesar de caracterizar analogia, não pode ser tida por in malam partem, e, portanto, vedada, sob pena de se inviabilizar a solução dos conflitos da lei no tempo.
Por exemplo, a aplicação do artigo 38 do Código de Processo Penal, que também se dá por analogia, poderia, em certos casos, ser mais prejudicial ao autor que o artigo 91 da Lei nº 9.099/95: basta pensar no caso em que o juiz determinasse, logo após a vigência da nova lei, a intimação da vítima para se manifestar. Ela teria apenas 30 dias para fazê-lo, enquanto a aplicação do artigo 38 do Código de Processo Penal lhe concederia prazo mais dilatado, de seis meses, ainda que contados da vigência da nova lei.
É dizer, a solução se tornaria casuística demais e causaria transtornos de segurança ao aplicador, que teria que se questionar, sempre, em que casos a aplicação do artigo 91 seria mais favorável ao acusado (ou investigado) ou em que hipótese o artigo 38 do Código de Processo Penal lhe seria mais benéfico.
Ponderação dos direitos e interesses em conflito
Mas o que justificaria a escolha pela aplicação analógica do artigo 91 da Lei nº 9.099/95 em confronto com o artigo 38 do Código de Processo Penal? O artigo 91 da Lei nº 9.099/95 não restringe de maneira injusta o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica. Pelo contrário. Garante o núcleo essencial da citada garantia e ainda salvaguarda o direito das vítimas sobre a higidez e a regularidade da persecução penal.
Em outras palavras, a solução está na ponderação dos direitos e interesses em conflito, por meio do princípio da proporcionalidade. Em minúcia: deve-se ponderar que a incidência do sobredito dispositivo legal não incursiona no núcleo essencial da garantia da retroatividade mais benéfica: inexoravelmente obstaculizar-se-á o prosseguimento dos procedimentos (judiciais ou istrativos) em curso se não houver manifestação da vítima.
Todavia, as vítimas serão cientificadas e poderão se expressar, o que não aconteceria se se empregasse o artigo 38 do Código de Processo Penal, cuja contagem decorreria da vigência da lei e correria sem que as vítimas se manifestassem, como se elas tivessem que acompanhar a evolução da legislação penal, dia após dia, para elas próprias tomarem a iniciativa de procurar as autoridades e representar, o que, sabe-se muito bem, é absolutamente absurdo.
No ponto, deve-se destacar que a retroatividade mais benéfica comporta níveis. A própria jurisprudência [12] colocou como marco fatal o trânsito em julgado da condenação. Logo, a aplicação da retroatividade seria máxima em se tratando nas normas penais incriminadoras e suas repercussões sancionatórias: a exclusão de determinado crime ou de agravante ou de causa de aumento de pena, que poderia ser perseguida pelo interessado após o trânsito em julgado.
Decadência após notificação da vítima
Porém, em casos de normas mistas, com parcela material, tal qual o novel artigo 171, §5º, do Código Penal, a retroatividade comportaria a colocação de um obstáculo intransponível, compatível com a natureza também processual da alteração: mudança da natureza da ação penal, de pública incondicionada para pública condicionada.
É o mesmo raciocínio empregado para se afastar a pecha de ilegal à aplicação analógica do artigo 91 da Lei nº 9.099/95 sob o equivocado fundamento de in malam partem, repise-se: a alteração do artigo 171, §5º, do Código Penal não repercute diretamente na norma penal incriminadora ou nas repercussões sancionatórias dela.
E, para finalizar, onde impera a mesma razão, deve prevalecer o mesmo direito. Se a aplicação do artigo 91 da Lei nº 9.099/95 está sedimentada para os processos já em curso, com denúncia anterior à Lei nº 13.964/19, em relação aos procedimentos de investigação istrativos (inquéritos policiais, notadamente), em trâmite e instaurados também anteriormente à Lei nº 13.964/19, a autoridade deverá notificar a vítima para que represente, no prazo de 30 dias.
E a consequência lógica de tal operar é: a decadência somente poderá ser reconhecida após a notificação da vítima para se manifestar, findo o prazo de 30 dias sem manifestação ou, ainda, se houver manifestação dela contrária. Em outras palavras, é descabido arquivar os procedimentos policiais pelo simples decurso do prazo de seis meses desde a vigência da lei, o que acabará por provocar a extinção da punibilidade em massa de incontáveis inquéritos policiais, à revelia das vítimas, o que causará inegável violação ao direito delas (obrigação positiva do Estado) de verem os autores identificados, processados, julgados e condenados.
[1]: HC 573.093/SC, Relator Ministro Reynaldo Soares Fonseca
[2]: HC n. 583.837/SC:, Relator Ministro Sebastião Reis Júnior
[3]: HC 610.201/SP, j. 24/03/2021)
[4]: HC 208817 A GR / RJ
[5]: Por todos,
[6]: Como defendeu Dario Brandão em <https://www.mprj.mp.br/documents/20184/3664339/Dario_Marcelo_Menezes_Brandao_RMP-87.pdf>, o aos 5 de março de 2025
[7]: STJ. HC 583.837-SC, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior
[8]: Por todos, Douglas Fischer, em <https://temasjuridicospdf.com/1a-condenacao-do-brasil-na-corte-interamericana-de-direitos-humanos/>, o em 5 de março de 2025
[9]: Por exemplo, MARTINELLI, João Paulo Orsini; SHIMITT, de Bem Leonardo. Direito Penal. Parte Geral: Lições Fundamentais. 6ª Ed. D\`Plácido. Belo Horizonte: 2021, p. 1266.
[10]: Cirino dos Santos, Juarez. Direito Penal. Parte geral. 9ª Ed. Tirant Lo Blanch. São Paulo: 2020, p. 45
[11]: Galvão, Fernando. Direito Penal. Parte Geral. 13ª Ed. D´Plácido. Belo Horizonte: 2020, p. 137
[12]: STJ. HC 583.837-SC, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior
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