Tribunais brasileiros descumprem prazos estipulados pela LAI e não permitem recursos
9 de julho de 2024, 8h52
Certas obrigações básicas previstas de forma expressa na Lei de o à Informação (LAI) são descumpridas pelos tribunais brasileiros. Um levantamento feito pela revista eletrônica Consultor Jurídico nos 27 Tribunais de Justiça, nos seis Tribunais Regionais Federais, no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal mostrou que um quarto deles não seguem os prazos da LAI e 77% não possibilitam recursos.

ConJur testou e-SICs de 35 tribunais; 25% deles não cumprem prazos e 77% não permitem recursos
Conforme diz o artigo 11 da LAI, um pedido de informação deve ser respondido pelo órgão público em, no máximo, 30 dias. Já o artigo 15 prevê que o cidadão tem o direito de “interpor recurso”, cujo prazo para nova resposta é de cinco dias.
Mesmo assim, entre os 35 tribunais testados pela reportagem, nove deles (25,7% do total) não responderam dentro do prazo de 30 dias. Já a possibilidade de recurso é ignorada por 27 cortes (77,1%) — o que inclui tanto as que seguem os prazos quanto as que os descumpriram.
Para chegar a essas conclusões, a ConJur fez pedidos via LAI por meio dos sistemas eletrônicos de informações ao cidadão (e-SICs) dos 35 tribunais. Os pedidos foram disparados entre o fim de maio e o início de junho.
Os dados solicitados foram: o número de julgamentos virtuais feitos no tribunal entre 2020 e 2023; a especificação do total a cada ano; e alguns esclarecimentos sobre o modelo adotado e a possibilidade ou não de sustentação oral dos advogados.
Prazo ignorado
Os nove tribunais que não responderam os pedidos dentro do prazo de 30 dias foram: TJ-AC, TJ-CE, TJ-PA, TJ-PR, TJ-PE, TJ-RO, TJ-RR, TJ-SP e TJ-TO.
Até o momento da publicação desta reportagem, três dessas nove cortes chegaram a enviar uma resposta, mas somente após o fim do prazo estipulado pela LAI. As outras seis sequer se manifestaram.
O TJ-AC respondeu com um atraso de seis dias. O TJ-PR demorou dois dias a mais do que o permitido. Já o TJ-SP falhou em cumprir o prazo da LAI por um dia.
No e-SIC do tribunal paulista, porém, tal atraso não é contabilizado. Isso porque, uma semana após o registro do pedido, a corte pediu um complemento: perguntou se o pedido se referia “a julgamentos virtuais ou a sessões de julgamento telepresenciais no segundo grau” — embora a expressão “julgamentos virtuais” tivesse sido usada de forma expressa no pedido.
A Seção de Gerenciamento do SIC alegou que “a dúvida surgiu porque o solicitante cita julgamento virtual, mas faz referência à sustentação oral”, embora o pedido buscasse justamente saber se havia sustentação oral nos julgamentos virtuais.
Após o esclarecimento de que o pedido não se referia a sessões telepresenciais, um novo protocolo foi aberto de forma automática no e-SIC do TJ-SP. Assim, o tribunal considera que cumpriu o prazo porque ou a contá-lo a partir do registro do complemento, e não a partir do pedido original.
O prazo de resposta estipulado pela LAI, na verdade, é de 20 dias, prorrogável por mais dez “mediante justificativa expressa”. Na prática, porém, os tribunais não justificam, nem informam essa prorrogação, ou seja, levam em conta um prazo de 30 dias desde o início.
Apesar de ter cumprido o prazo previsto na LAI, o TRF-1 informa no próprio e-SIC que seu prazo é, na verdade, de 30 dias, prorrogável “por igual período”. Para dobrar o prazo da lei, a corte se baseia em uma resolução interna.
Recurso ignorado
O problema mais frequente nos e-SICs dos tribunais é a impossibilidade de recurso. Na maioria das cortes testadas, o cidadão não tem a opção de recorrer caso entenda que o seu pedido não foi respondido de forma adequada e completa, ou mesmo quando não há resposta dentro do prazo.
Os únicos oito tribunais que permitem recursos (e deixam isso claro) são: STF, TRF-2, TRF-4, TJ-GO, TJ-RJ, TJ-RS, TJ-SP e TJ-TO. O STJ — cujo e-mail de resposta informou de forma expressa que “não cabe recurso” — e todos os demais TRFs e TJs não contam com essa opção.
Em alguns casos, mesmo sem a opção de recorrer, é possível “improvisar” recursos. O e-SIC do TRF-1, por exemplo, não permite recursos. De início, a corte se negou a responder o pedido, pois alegou que isso exigiria trabalhos adicionais — uma exceção prevista na LAI.
A ConJur, então, criou um outro protocolo no e-SIC, com menção ao protocolo do pedido anterior; explicou que o novo pedido se referia ao exercício do direito de recurso garantido pela LAI; e argumentou que o tribunal não justificou de forma suficiente sua suposta incapacidade de apresentar uma resposta sem trabalhos adicionais.
Mais tarde, o TRF-1 reconheceu o novo protocolo como um recurso e forneceu os dados sobre julgamentos virtuais. Ou seja, o e-SIC não dava a opção de recurso, mas, na prática, foi possível recorrer e obter a resposta.
Isso não foi testado em todos os tribunais — até porque a maioria forneceu os dados sem contestações. Por isso, é possível que a improvisação de recurso também funcione nos e-SICs de outras cortes. De qualquer forma, a maioria dos sistemas não deixa claro que existe a possibilidade de recurso.
O TJ-AM, por exemplo, informou que eventuais manifestações “ao teor” da sua resposta poderiam ser encaminhadas a um endereço de e-mail, “fazendo menção ao respectivo processo istrativo”. Não ficou claro se isso seria um recurso.
Já o TJ-DF citou a possibilidade de recurso, prevista na LAI e em uma portaria interna, mas não especificou como seria possível registrá-lo. O formulário do e-SIC não tinha essa opção.
O advogado Bruno Morassutti — diretor de advocacy da Fiquem Sabendo (organização sem fins lucrativos especializada em transparência e o à informação) e membro do Conselho de Transparência da Controladoria-Geral da União (CGU) — diz que os tribunais precisam informar a possibilidade de recurso.
Morassutti lembra que isso é um padrão no Poder Executivo, mas não ocorre no Judiciário: “O direito a recurso nos tribunais é muito difícil”. Segundo o advogado, faltam orientações sobre onde apresentá-lo, o responsável por respondê-lo e a possibilidade de levá-lo ao Conselho Nacional de Justiça.
Ele explica que o CNJ, por ser um órgão de controle, analisa recursos de pedidos de informações via LAI em última instância. Mas, para isso, é preciso esgotar tais possibilidades nos tribunais.
o negado
Em tese, 26 tribunais responderam dentro do prazo. Na prática, entretanto, nem todas as respostas foram suficientes ou mesmo compreensíveis.
Apenas duas cortes se negaram a fornecer os dados sobre julgamentos virtuais. O TRF-1 foi uma delas, mas voltou atrás após o recurso improvisado.
Já o TRF-3 não informou os dados na resposta ao pedido feito pelo e-SIC. Em vez disso, a Ouvidoria-Geral apenas sugeriu que a ConJur entrasse em contato com a Secretaria Judiciária da corte. Não havia como recorrer.
Outros dois tribunais enviaram respostas incompletas, sem possibilidade de recurso. O STJ informou apenas o total de julgamentos virtuais feitos desde 2020, mas não os separou por ano. Já o TJ-AL forneceu os dados somente até o ano de 2022 e não explicou o motivo de ter ignorado 2023.
Houve ainda uma resposta ininteligível. O TJ-BA não respondeu efetivamente, mas apenas enviou um parágrafo com contatos, endereços e nomes de servidores, sem pontuação, nem espaçamento adequado. Também não foi possível recorrer.
Assim, se somados o TRF-3, o STJ, o TJ-AL e o TJ-BA aos nove tribunais que não cumpriram o prazo, chega-se ao total de 13 cortes (37% do total) que não apresentaram respostas claras e em conformidade com a LAI.
Outros problemas
O STJ e o TJ-BA também não informaram os responsáveis pelas respostas aos pedidos — algo feito por todos os demais tribunais.
Sem resposta completa, nem possibilidade de recurso, o STJ ainda apresentou outro problema: o cadastro no site da sua Ouvidoria, de início, não funcionava. Assim, a princípio, não era possível registrar um pedido de informação.
A questão só foi resolvida oito dias depois da primeira tentativa, após sucessivos contatos com o e técnico de informática da corte.
Outros quatro tribunais — TRF-2, TJ-AL, TJ-ES e TJ-SC — não geraram um número de protocolo para o pedido de informação logo após o seu registro. Ou seja, até o momento da resposta, não era possível consultar o andamento dos pedidos. Os protocolos dos três TJs foram mencionados nas respostas. O TRF-2 não informou qualquer número.
Além disso, em outros pedidos de informações paralelos, dois tribunais (TRF-3 e TJ-MT) não souberam informar o link para os relatórios estatísticos de seus e-SICs. Isso também não estava disponível de forma intuitiva nos respectivos sites.
Morassutti aponta ainda outra falha comum: os tribunais não divulgam listas de informações classificadas e seu grau de sigilo, o que é exigido pelo artigo 30 da LAI. Em geral, só é possível descobrir que alguma informação é secreta ao pedi-la e receber a negativa.
Lei mal aplicada
Embora acredite que a situação melhorou desde a edição da LAI, o advogado considera que a transparência e o o à informação nos tribunais ainda estão muito longe do ideal.
Com o descumprimento reiterado da lei, “os cidadãos acabam sem conseguir o às informações públicas a que têm direito”. Além disso, “a reputação institucional fica prejudicada, pois se fortalece a percepção de que os tribunais são instituições opacas e não interessadas em prestar contas”.
Isso ocorre, segundo ele, devido à ausência de organização e planejamento adequados para cumprir a LAI. Os tribunais também não priorizam melhorias nessa área, “como sistemas melhores e mais aderentes a boas práticas já adotadas em outras esferas de governo”.
Há ainda a falta de fiscalização efetiva, que deveria ser feita pelas autoridades de monitoramento dos próprios tribunais e também pelo CNJ.
Cada corte tem uma autoridade interna que deveria verificar se a LAI é seguida. Caso constatado o descumprimento, o correto seria investigar os servidores responsáveis. Se as justificativas não forem plausíveis, há espaço até mesmo para abertura de procedimentos istrativos disciplinares (PADs) e punições.
O CNJ também deveria punir os tribunais que descumprem a LAI de forma reiterada. A Corregedoria Nacional de Justiça (órgão do CNJ) é responsável por fiscalizar o cumprimento das normas istrativas das cortes. “Dentro disso estão as normas de transparência”, indica Morassutti.
Na sua visão, uma solução para o cenário atual da LAI é uma maior fiscalização, principalmente pelo CNJ, com “punição de agentes responsáveis em caso de descumprimento reiterado”.
O CNJ também deveria, segundo o advogado, aprimorar a sua Resolução 215/2015, que trata da aplicação da LAI. Ele sugere “melhores requisitos para atendimento por transparência iva”.
Por fim, Morassutti ainda cita a “abertura de diálogo com a sociedade civil organizada, para coletar s sobre melhorias”.
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